quarta-feira, 28 de maio de 2014

Livro dos sonhos esquecidos. Autor desconhecido. Tomo M pág. 32.347



Aqueles que não têm nome, nem mesmo a ideia de um rosto. Vivem dentro das frestas, entre portas semiabertas e nos cantos de nossa visão. Apenas observam, sempre estão mas nunca são. Não se sabem de onde vieram ou o quê eles querem. Uns dizem que são existências semi-completas, algo  entre o ser e não ser. Outros acham que eles são gerados pela essência  da inveja, como pequenos frutos sem semente. Mas ninguém sabe ao certo o que são, apenas que estão ali, a nos observar. Livro dos sonhos  esquecidos. Autor desconhecido. Tomo M pág. 32.347

quarta-feira, 21 de maio de 2014

Livro dos Sonhos Esquecidos. Autor desconhecido. Página solta.



O desejo verte sobre a humanidade a necessidade de mudança, é uma força vital para o nosso desenvolvimento. Aquilo que nos faz movimentarmos, não confundi-lo com a luxúria pois esta é apenas um pequeno elemento, como que o fluido embriagante filho da destilação. Mente aquele que diz não desejar, pois, até mesmo buscar se distanciar dele está, de certo modo, ligado ao desejo.
E o sonho, como já dito antes por outras vozes, está naturalmente imbricado ao desejo. Em uma folha solta, com apenas a numeração da página, encontrei este breve relato.

“Soube através de outros viajantes sobre uma cidade que era a manifestação do Desejo, me falaram dela através do “ouvi dizer”. Era esta cidade como uma jóia rara, dizem, como se feita por um ourives. Outros dizem que ela brilhava à noite assim como a via láctea, pela intensidade de vida presente nela, já alguns se referiam a ela como um lugar paradisíaco onde se manifestava todos os sonhos eróticos. Cada forma, por cada um dos viajantes, era uma forma nova. Esta cidade mítica no mundo dos sonhos era um assunto sussurrado nas tavernas arquetípicas com seus variados viajantes. Um velho muçulmano me disse que ela era uma grande biblioteca, do mais alvo marfim, com uma mesquita planejada nos sonhos dos mais fabulosos arquitetos. Certa vez conheci, também, um pajé Guarani que me disse que lá estaria seus ancestrais e que a caça iria até seus arcos, sem nenhum homem branco, apenas a boa aventurança. Um velho senil me falou que lá havia todas as casas demolidas, cada lembrança da infância invocada para aquele que lá estivesse, com suas mães esperando na porta e o cheiro inconfundível de cada receita que se perderam com elas. Cada qual tinha um nome para esta cidade.
Resolvi seguir as histórias e partir para esta cidade misteriosa. Dei-me num deserto de sal, com poucos suprimentos, mas depois de poucos dias ali estava a sua imagem, ainda meio ocultada pelo horizonte, era uma cidade enorme, prédios variados e caóticos brilhavam no contraste de um céu negro, suas janelas eram de um azul intenso. Acreditava piamente que para mim tudo indicava que ali estariam todas as histórias esquecidas, cada artigo já não mais esgotado junto com cada peça fora de cartaz, era um local onde todos os tempos se colidiam. Era ao longe, uma vista gloriosa, um oásis em meio à uma extensiva salina.
Minha curiosidade supria as más condições do local, o sal estava quase a arrancar os meus pés, mas segui dias e dias naquela jornada, fascinado com aquela figura presente no horizonte. Economizava no máximo tudo e aquela imensidão de sal não me intimidava. Havia tantas promessas, que tipo de relíquias eu iria encontrar lá? Talvez amores de juventude, talvez meu amor ainda lá, como no dia em que a conheci, me esperando...
Mas tive de voltar, a realidade ao meu redor era cruel quanto ao seu recado, me faltaria água num deserto de sal. Prometi a mim mesmo voltar e dei a ela as costas. Como um apaixonado não correspondido, cedi várias vezes a olhar para trás, para me entorpecer e sofrer com aquela visão não correspondida, a promessa de um futuro que não aconteceu.
Mas depois a razão voltou à minha mente, desfiando aquele encanto. Entendi o que mantinha viva aquela cidade, pois, voltando à memória, percebi que Ela não aumentava nem diminuía conforme eu andasse, estava sempre lá, semioculta pelo horizonte. Não importava o quanto eu andasse naquele deserto, chegar a ela não era o importante. Por isso que ela se mantinha viva, por isso existia.
Lembrei-me das Cidades descritas por Ítalo Calvino. Lembrei-me da semelhança com as coisas sussurradas naquelas taverna.   Quem sabe posso insinuar que esta certa pessoa estivesse, por assim dizer, no lugar de Marco Polo...”

Livros dos sonhos esquecidos. Autor desconhecido. Tomo M. Pág. 3. 348

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Não sei se é realmente algo. Nem mesmo se é um rastro de alguma coisa. Apenas pude presenciar este fenômeno, é entre um grito e um choro, geralmente feminino. Escuta-se apenas em lugares ermos, onde o vento se encontra presente. Se fores rápido consegues acompanha-lo, é como se este grito pudesse correr ao vento, ou por este fosse carregado. Mas, parece ter algum tipo de inteligência, só se deixa ser escutado por solitários ou grupos isolados, para depois ir embora. Mas nem sempre. As vezes persegue apenas sem se saber o motivo, torna-se uma suplica constante e perene, em seu ouvido, por todo o tempo. Livros dos sonhos esquecidos. Autor desconhecido. Tomo M. Pág. 3. 348

segunda-feira, 19 de maio de 2014

Livro dos Sonhos Esquecidos. Autor desconhecido. Tomo P Pág.1996




Andando em terras liminares, podia-se ouvir o murmúrio de uma presença densa, comum e conhecida. Era, entre prédios com janelas embaçadas, o respirar sonolento de uma metrópole. Escutava-se o barulho dos carros e motos indo e vindo em intervalos regulares de tempo, alguns passos de pessoas e murmúrios incompreensíveis de conversas. Mas eu andava entre aqueles prédios, estava eu no meio daquelas ruas. Não havia ninguém.
Não havia ninguém e eu podia simplesmente deitar ali, escutar aquele som, aquela atmosfera. Da onde aquilo vinha? Sentia-me como um fantasma, como se a realidade estivesse paralela a mim.
Nas vitrines e janelas embaçadas, nos nomes conhecidos em letreiros de lojas, em pertences de mendigos ausentes semi-ocultados nas sombras, tudo aquilo ali me trazia um sentimento angustiante, como se o calor e o viver estivesse longe e eu, minha pessoa, estivesse atrasada. Era tarde, muito tarde...
Mas não, havia vida e ela estava em algum lugar, paralela à mim ou escondida em algumas daquelas janelas. Senti vontade de quebrar aquelas janelas e investigar aquilo, queria gritar para alguém me escutar e esta coisa possível, me responder. Precisava me sentir vivo sob a presença de outra coisa, fosse a coisa que for.
Escrevi meu nome com um estilete nos bancos, escrevi em várias formas possíveis a idéia de que havia alguém, para que outro alguém não se senti-se como me senti.
Livro dos Sonhos Esquecidos. Autor desconhecido. Tomo P Pág.1996

domingo, 18 de maio de 2014

Livros dos sonhos esquecidos. Autor desconhecido. Tomo B. Pág. 11.1989

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Existe um rio, um tipo de rio que nasce de uma fonte dos desejos. Sua água tem um gosto ferruginoso, provocado pelas moedas de sua nascente. Suas margens são de uma areia cinzenta e lisa, onde, caso desejes escavar, verás varias alianças e outros tipos de jóias de mesmo significado, tantos elos prometidos que se enterraram como se fossem antigos moluscos. Nomes e datas, fotos e relicários que virtualizaram promessas de elos eternos, quando estes despedaçados, formam o chão desta paisagem. Como um lixão ou recife de coral, tanto faz, são tantas promessas mortas depositadas no fundo deste rio.
 Quem a bebe a agua deste rio sente uma ansiedade infundada, como se espera-se algo ou um alguém. As pessoas são vistas encarando melancolicamente janelas, olham longe em meio a multidão esperando. Tornam-se reclusas em meio às torrentes do tráfego. Costumam vagar pelas estradas olhando para o além, como se estivessem a esperar algum vulto aparecer na linha do horizonte.
Algumas voltam ao rio e se afogam, como numa gula ou num desespero de assim encontrar aquilo que anseiam, é algo que se percebe ao se percorrer o rio. Em seu outro extremo, em sua foz se vê uma queda d'água, olhando para ela e jogando uma lanterna, se vê tantos corpos de sonhadores alvos e inchados como se estivessem dormindo. Ilusão passageira quando se percebe os lagostins, as cracas outros crustáceos se alimentando daquela cena. Presos em suas cascas, aquelas mentes isoladas, alguns sábios teorizam que são as almas que saem dos corpos nesta forma, para se alimentar dos resíduos do rio, como eternos dependentes acharam uma forma que melhor significasse esta situação.(Livros dos sonhos esquecidos. Autor desconhecido. Tomo B. Pág. 11.1989)

quarta-feira, 14 de maio de 2014

Livros dos sonhos esquecidos. Autor desconhecido. Tomo A. Pág. 21.114

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É um jardim em algum lugar. Como se feito para alguém, em algum lugar onde o sol sempre está a morrer. Com uma iluminação de branca para azulado, onde tudo é tingido por um aspecto fantasmal, em lâmpadas suspendidas por postes de ferro fundido, trabalhado sob cinzel. Tem também bancos brancos cobertos com curiosas espécies de trepadeiras, de aspecto frágil e pequenas flores quase transparentes, como se fosse uma espécie de rede. Eram bancos que estariam muito mais agradáveis se estes tivessem indícios de já terem sido usados, mas, como tudo ali, transpareciam estarem imbuídos de uma falta, um vazio incerto de como se estivesse com uma peça faltando.
Tudo ali transparece como se falta-se algo, mas é inquestionavelmente belo, como toda melancolia terna pode ser. Podia-se sentir algum mundo incerto luzir lá fora, com as luzes de uma cidade infesta. Mas lá, a imperturbável solidão reina sobre aquele verde pálido, sobre aqueles galhos frágeis e a presença indiferente de pirilampos e mariposas.
Nuvens de efemérides giram numa tentativa vaga de felicidade, buscando se acasalarem antes que as suas energias se extinguem, e parem assim, de refletir as luzes das lâmpadas e findarem no breu daquele chão. Morrem na mesma indiferença em que as luzes dos apartamentos na paisagem se apaga de vez em quando.
Uma leve garoa acaricia a pele daqueles que se aventuram a adentrar no jardim, longe das luzes se pode sentir um leve roçar, como se um vento lhe lembra-se daquele beijo não dado. As plantas deslizando sobre seu rosto como o toque de quem estás a desejar, como se cada elemento presente naquele lugar fizesse de algum modo lhe recordar a chance perdida, o desejo não saciado, o medo que rege toda a insegurança, o passo não dado. E é um deleite, como é em si o desejo. Como é em si a paixão e a pena de si próprio. O acalanto da inevitabilidade. O fracasso esperado.
Quem criou este jardim, em seu sonho ou delírio, estava imerso nas águas da frustração, pois caminhando nele, seguindo as lampadas que se envergam como monges solitários, pode-se encontrar uma estrutura fantástica. Como um templo, vários pilares se erguem de modo peculiar: Caso os contorne, poderás perceber que formam um estranho círculo, e olhando para seu centro, tens a sensação de um lugar muito mais vasto do que esperavas.
Caso se resolva percorrer e conhecer o centro do jardim, ele te levará facilmente e nele tem uma sombra, ou uma árvore retorcida que se projeta sinuosamente entre toda aquela estrutura. Nela tem apenas parcas flores vermelhas, como sangue coagulado. Nela se percebia um certo cansaço, como aqueles chorões que crescem entre o asfalto e o concreto. Mas ela estava lá, abrindo caminho, como um colossal gigante deformado, com seus inúmeros dedos nodosos. Era a arvore central, a maior e a primeira, a mais humana. E estava nela escrita violentamente, arranhada como quem arranha seu próprio sepulcro, apenas uma coisa, milhares e milhares e milhares de vezes reescrita, uma suplica: “Me perdoe, me esqueça.” Livros dos sonhos esquecidos. Autor desconhecido. Tomo A. Pág. 21.114

Repetição(2007)




(Conto de 7 anos de idade, quanta coisa mudou... 2007 foi um ano interessante)

Repetição

Meu caro, isso não é uma história é um fato, eu não sei como te provar isso, mas tens a minha palavra de que isso ocorreu. Eu sinto a veracidade disso bem fundo na minha alma. Sabes aqueles sonhos seus, aqueles sonhos do qual você cosegue até sentir, um romance dentro de sua cabeça?Quem nunca sonhou que estava com alguém, um amor platônico ou não? Quem nunca sonhou meus pêsames.
Eu não sei em que mente ou em que plano isso ocorrera, mas nunca se perguntaste a respeito dos coadjuvantes nos sonhos, para onde vão? O que são? E se são alguém? Uma vez eu pensei que fosse pessoas aprisionadas em fragmentos do tempo, sendo elas de outras dimensões onde isso ocorrerá. Besteira vendo isso agora, mas na hora me soou bastante razoável.
Digamos, em alguns sonhos as coisas nunca se resolvem, no momento em que elas vão se resolver, você acorda, ou acorda mesmo antes disso, isso é frustrante não? E tem aquelas que nunca acordam, em uma cama, causando dor a suas famílias, se recuperando de algo irrecuperável, dando dinheiro para terceiros.
Ok, daremos adeus ao prefácio e iremos para a história, ninguém nunca gostou de prefácios acho, ou pelo menos nunca ninguém comprou um livro apenas para ler apenas o prefácio, e nem sei se contos possuem prefácios...
Legal, vamos para o personagem, ele é simplesmente a figura ou o fantasma de alguém, uma pessoa que vive em seu mundo em uma rotina assustadoramente igual, acho que morto por dentro se ele não fosse um coadjuvante, em um sonho qualquer. Assim era a “vida” dele, acordando sempre as oito horas, tomando um café da manhã resumido a pão e café preto, se arrumando indo para o trabalho, o trabalho era um saco justamente porque é um trabalho, se não fosse tedioso não seria trabalho.
Porém no trabalho, existia o que em toda história clichê tem, um romance idiota, completamente puro ingênuo e artificial, uma garota com roupa de retalhos que trabalhava no setor na frente dele, que era separado por uma parede de vidro, algo ruim porque evita qualquer um de coçar o nariz em um período de oito horas.
Eu não sei que raios ela via nele, talvez a ausência de vida social deixe as pessoas meio malucas, porém é um sonho e sonhos não precisam de explicação acho, logo ela gostava dele, e fica se deliciando vendo um cara depressivo carimbando papéis sem ao menos lê-los, imaginando aquela barba medonha de quem não sabe aparar rochando seu pescoço e outras coisas imbecis. Completamente relativo ao caso de pessoas carentes, ou pelo menos no meu ponto de vista.
Durante o intervalo ela ficava vendo ele fumando olhando para o vazio, se perguntando porque ele não se envolvia com as outras pessoas, nem ao menos para perguntar as horas. Todo dia ela perguntava as horas para ele, e ele a respondia dando o horário trez minutos adiantado.
E se passava o trabalho que simplesmente era uma revisão de cenas, e esses dias ficavam na memória do nosso protagonista, acho que é esse o nome, a partir de agora ele se chama protagonista, que é o cara que é morto por dentro e que fuma olhando o vazio. A menina será Amélia, um nome bonito que me lembra milho. O único que tem esse tipo de memória é o protagonista, eu “não sei” porque, mas ele tem, talvez ele fosse uma alma perdida que entrou no lugar errado, mas ele se lembra dos dias repetidos, tanto em seus atos repetidos, e em tudo repetido...
Para ele a vida é isso: Uma rotina, sendo todos os dias iguais.
Amélia pensa que ele nunca lhe deu bola, mas quando ele volta do trabalho, para casa, ele parava para desenha-la, e depois ia ver tv, que passava sempre a mesma porcaria, na verdade ele apenas retocava um retrato dela sentada em sua mesa, trabalhando, um retrato que nunca se acaba, faltando sempre os mesmos detalhes: As covinhas, as cores em seu vestido de retalhos, o relevo de sua boca, a suas mãos...
Um dia, se é que pode haver dias, ele parou e olhou para ela por uns minutos, e ela respondeu esse olhar, mas fora só aquilo, depois ele perguntou para ela, no intervalo, sobre a função dela, eles conversaram durante toda a tarde e depois ele pegou o numero dela. No outro dia ela não se lembrava de nada, e o numero dela sumiu. Ela pensou que ele estava louco e evitou ele durante o outro dia, só naquele dia, no seguinte voltou como tudo fora.
Ele sabia que os dias eram iguais mas ele associava ao seu comportamento. Isso o fez entrar em pânico, ele sabia que nunca ia tela. Uma vez ele rasgou o retrato dela, e ele voltará, e assim fora de inúmeras tentativas de mudar essa rotina, mas os dias se repetiam, e repetiam e repetiam...
Um dia ele não fora ao trabalho, mas lá ele apareceu depois de algum tempo, logo sincronizou isso em seu relógio, mas, convenhamos, dentro dessa situação ajustar um relógio não é algo muito útil. Mas depois de um tempo ele já tinha decorado o tempo nas mudanças de cenário, e ele tinha um plano para quebrar essa regra angustiante. Mas é o mesmo que um moleque conseguir destruir a rotação do planeta e a passagem da noite para o dia.
Fora por isso que ele morreu por dentro. E assim fora. Até que ele viu uma pessoa que não fazia sempre as mesmas coisas, talvez fosse que nem ele, talvez fosse só parte de alguma crise de loucura dele. Era a pessoa mais confiante ali,ele nunca notara o rapaz, que andava por lá despreocupado, talvez fosse a única ou a primeira vez que ele tenha passado na empresa.
Em princípio ele ficou com medo de entrar em contato com ele, cá entre nós, ele não estava acostumado com esse tipo de acontecimento. Aquele homem não parecia notar a anomalia no espaço e tempo daquele lugar. Ele, o protagonista, sabendo que no outro dia seria sempre igual, resolveu segui-lo para onde ele fosse: Fez um percurso simples, conversou com pessoas aleatórias sobre assuntos mais aleatórios e fez um empréstimo, momento que finalmente o protagonista descobre o que raios é a empresa onde ele trabalha.
A felicidade pela descoberta se acabou com a frustração de que no momento em que ele atravessou a porta da frente de seu trabalho, ele não se encontrou na frente da firma, mas sim nos fundos onde ele ia todos os dias olhar para o vazio fumando. Legal, além do fato dele estar preso em um dia, ele está preso em um cenário limitado.
O que restava é ele esperar aquele homem e tirar sérias conclusões, enquanto isso, a menina do vestido de retalhos lhe pergunta mais uma vez as horas, do qual ele responde três minutos adiantado.
Assim fora por dias e dias e dias, até que em um período de exatamente um mês. Se ele não errou nas contas já que marcar no calendário seria inútil. Aquele homem retornou, indo falar com as mesmas pessoas e repetindo a cena, dessa vez com um terno azulado ao invés do pretinho básico anterior.
A reação foi correr até o indivíduo do qual vamos chamar de coadjuvante, acho que é o nome apropriado,. Pois bem, ele correu em direção ao coadjuvante e lhe inquiriu sobre sua identidade, sendo que ele respondeu assustado, ser um tal de Ricardo Farias e estar lá para um empréstimo que apresentou alguma falha no sei lá o que. Digamos que a reação de nosso amigo protagonista fora leva-lo através do uso da lábia até perto do banheiro, soca-lo e faze lo desmaiar, amarra-lo na privada e interroga-lo sobre o lapso temporal, não foi nada produtivo e isso apenas resultou em, quando deu o horário do interva-lo para fumar um cigarro, ele apareceu nos fundos da loja, com a estagiaria abobada lhe perguntando as horas. Ele voltou ao lugar, e ele não estava mais lá.
Definitivamente isso foi mais frustante ainda, e o homem misterioso do sorriso colgate não apareceu mais no local por uma questão de anos, ele já não dava importância a rotina, e apenas esperava as coisas seguirem seu curso, hora uma cara emburrada no trabalho, uma cara emburrada no fundo da loja, uma cara emburrada no percurso para a casa, uma cara emburrada no retoque do retrato da estagiaria Amélia, uma cara emburrada na cama e enfim, uma cara emburrada no café da manhã...
Outra opção seria o se matar, se desse certo “Eba! Adeus rotina!” se desse errado ele ia estar na droga dos fundos da loja com a Amélia lhe perguntando as horas, ele pensou em Amélia, ele nunca mais ia ver o rostinho dela, as covinhas, o cabelo enrolado e aquela cintura perfeita... Procurando fazer o olhar dela se encontrar com o dele, mas ele pensou que aquilo não valia a pena, no outro dia ia ser o mesmo, e coisas assim não valem a pena.
Ele tinha de se despedir dela, a idéia seria ele se enforcar com a gravata no banheiro, ele olhou, Protagonista olhou para Amélia, um nome do qual me lembra milho e derivados, um nome que para ele lembrava aquela feição do qual ele nunca terminará no retrato, e que talvez ela só existisse naquele lugar, assim, de certo modo sem alma. Seu tempo de divagação o fez aparecer fumando olhando para o vazio, com Amélia arranjando uma desculpa para conversar com ele, pedindo as horas, ele pegou sua mão, olhou nos olhos dela, e a beijou, levantou ela pois ela era baixinha e as sandálias dela pendiam no ar com aquelas perninhas brancas brancas suspensas, parecendo uma boneca. Momento lindo não? Lembre-se que ele vai se enforcar no banheiro e que talvez ela nem tenha alma.
Ele deixou ela lá, ela com os olhos brilhando, ele com a mentira que já voltaria e com os olhos em lagrimas pelo seu enfadonho amor platônico, sabendo que logo logo estaria com a gravata apertando o seu pescoço, servindo para o seu uso mais pratico, que muitos adultos frustados fazem uso.
E ele o fez, em lágrimas, ele escorregou na privada e seu pescoço quebrou, mas ele ficou ali consciente, até que ele começou a sentir um calor pelo corpo, abriu os olhos, e lá estava ele, acordando numa cama branca, em paredes brancas, não conseguia falar e seus músculos pareciam fracos demais. A luz entrava pelo quarto em uma janela com um fundo azul, ele sentiu o calor da luz, uma moça de branco estava olhando para ele, surpresa, ele olhou nos olhos dela, era aquele mesmo rosto, ele sorriu, ela estava alegre pelo fato desse cara sorrindo acordar do coma.
Ela não mais apareceu, outras pessoas cuidaram dele, reviu a família e tudo o mais.
Tempos depois voltou ao hospital, indo procurar a menina de seu sonho, ele a encontrou tomando café e fumando um cigarro, ele usava uma camisa listrada, ela usava avental branco e sandálias, nosso protagonista perguntou as horas, a menina o reconheceu e sorriu, e deu as horas com três minutos atrasados. Conversaram, ele pegou o telefone dela, no outro dia ele acordou, e era um outro dia.

Eduardo gostava de andar na caminhonete do avô.

Eduardo gostava de andar na caminhonete do avô. Este, sem muito senso de responsabilidade, o deixava ir à noite na capota. Deitado se segurando em alguma coisa que ali estava para tal fim, olhando para os postes passando e para os prédios que se seguiam, um após o outro, com as janelas acesas num azulado fosfóreo. Sentia uma sensação boa, não havia nada mais bonito do que aquele momento. Chovia como chovia em São Paulo, naquela hora uma garoa fraca refresca um dia quente. Fechava os olhos. Estava tranquilo, em seus poucos anos, sem muito a se preocupar no momento, seu pensamento pairava em algum lugar entre sorvetes e dinossauros. Talvez os dois juntos, talvez o seu pai tenha locado, de novo e de novo, conforme pedira a ele, o Jurassick Park.
Aquilo fora á quanto tempo? Antes de seus seis anos de idade. Aquele lugar nem se lembra onde foi, teria de andar a São Paulo inteira daquele jeito para se lembrar onde era. E isto, ele colocou na cabeça, faria ao menos uma vez na vida. Mas creio que sua esposa não curtiria muito a idéia, provavelmente ele não pediria a ela para dirigir.
Sua vida estava um tanto quanto lenta, devagar mas não no modo positivo, como se ela fosse uma espera de poucos momentos agradáveis, e Diana não curtia nenhum plano nem mesmo sair para alguma coisa assim. Ser adulto é um saco, é mais uma postura que uma ação, pensou.
Ela tinha dormido vendo o filme que ele tinha insistido a ela a ver, pois em algum momento ela tinha enfim, cansado de falar mal do roteiro. Para ela qualquer ação sua se resumia a bobo e sem graça, para ela qualquer ideia dele era um prólogo á uma frustação futura. Restava, para ele, sentar no sofá e fazer algum concurso público.
- Amadureça.
Era isso que ouvia em sua cabeça.
- Seja alguém menos bobo.
Ecoava, em seguida.
Cobriu-a com o cobertor, desligou a luz da sala e foi fazer a única coisa que lhe faria bem, no momento. Foi á garagem, ligou o carro, ligou o rádio. Foi-se para a lagoa perto de sua casa, pois gostava daquele lugar, principalmente à noite, a lagoa faz tempo não vazava pro mar, ele e a lagoa estavam morrendo, mas mesmo assim, aquela água parada refletia as casas mais ao fundo junto com a lua que nesta época do ano mais parece uma moeda de latão. Acendeu um cigarro, aqueles cigarros sempre fizeram sua pressão baixar, mas não se importava. Naquela altura do campeonato não lhe restava muita coisa.
Uma hora ou outra ela iria acordar, uma hora ou outra alguma coisa ia acontecer, uma hora ou outra esperaria mais uma hora ou tra. E assim se seguiria, sempre neste ritmo, mas não hoje.
Pois atirou seu carro na lagoa.
Eduardo gostava de andar na caminhonete do avô. Mas a distancia e o tempo lhe fizeram esquecer destes momentos. Sua vida reduziu-se à um tom cinza amarelado e seus gestos foram ficando cada vez mais reclusos. Não havia mais os tons fosfóreos que gostava de imaginar quando mais novo. Casou-se com o pensamento realista e pessimista que gostava de dormir vendo televisão e se chamava Diana. Até que gostava dela, mas à noite, quando deixava a luz do abajur acessa a meia luz, gostava de pensar se um dia fora ou será ela uma pessoa digna de ter um nome como aquele. Já questionou uma vez ela sobre a possibilidade de sair por ae, viajar, mas tempo e dinheiro foram as respostas que escutou.
Estava cansado a ponto de questionar algumas vezes se aquilo era vida ou morte, se morte poderia ser um pouco mais emocionante. Se era ele ou o tempo que havia parado e tudo não era apenas o apodrecer do que um dia se moveu. Aquilo o angustiava.
Mas um dia desses, em um acidente de percusso numa noite clareada de sexta feira, um alcoólatra o atropelou junto com outras pessoas na faixa. Ato que acabou matando uma senhora com a filha. Mas ele apenas quebrou a perna, como ele era o menos acidentado no local foi consensualmente o último a ser atendido. Consciente e um tanto quanto melancólico demais deixou-se levar pela situação e ficou lá, entorpecido pela adrenalina olhando os postes no local e os prédios com suas janelas brilhando. Até sua pressão descer e cansado apagar.
Acordou com a perna enfaixada e Diana o levando de carro para sua casa. Estava estirado no banco de trás do carro, podendo acompanhar as luzes vindo e indo em relação à janela. Se sentiu como aqueles pássaros que deliram, olhando para o sol, na sede, esperando este por fim o levar. Insistiu em meio à uma discussão que queria parar na locadora e em meio a maiores discussões conseguiu locar aquele filme de sua infância.
Sabia que não podia conversar com ela sobre tudo isso. Aprendeu que com algumas pessoas o silêncio é a melhor forma de manter uma relação. Aprendeu que estando a parte era a melhor forma de dizer muita coisa. Mas as coisas estagnam e aquilo mofou e floresceu como rotina.
Queria gritar, mas ninguém iria entender. Então, com seu sangue frio e acostumado resolveu dar um fim a tudo aquilo, rever por fim um tom de seu passado feliz e depois romper com aquilo para sempre.
Era só por ela para dormir, pegar a chave, andar como pode até o carro e se jogar. Jogar o carro na lagoa ia fazer ela procurar por ele no lugar errado. Tempo o suficiente para ir embora. Um táxi o esperava a alguma distância, todo o seu salário para saber se alguns parentes ainda se lembravam dele. Com a roupa do corpo e alguns pertences de apego iria partir até a sua velha cidade e lá tentar voltar a ser um ser vivo novamente.
Mas isso não era tudo, o táxi que ele tinha chamado tinha a capota  removível.

quinta-feira, 1 de maio de 2014

Aquele Lugar (TEMA: Último dia no paraíso)



Aquele Lugar

Eu morri, me lembro de estar morto, assim como meu irmão. Nunca mais voltaríamos para casa. Ambos tínhamos padecido de uma pneumonia derivada de sair a noite, para ver pela primeira vez a neve em nossa viagem para o interior de Santa Catarina. Eu era mais novo, por volta dos 7 e meu irmão creio que 10 ou 9 anos. Me lembro do desespero de meus pais, e o sentimento de culpa de ter estragado a férias deles por uma simples curiosidade. Mas eu era tão curioso...
Mas agora eu estava ali, em outro lugar, um lugar estranho. Meu irmão estava comigo, não sabia porque de estar lá, mas sabia que estava morto, a pneumonia tinha levado a mim e a meu irmão. Mas aquilo me atormentava, sob um céu opaco lamparinas antigas iluminavam estruturas de madeira que se sustentavam acima de uma água escura e turva. Era um hall de palafitas, mas aquelas toras deviam se estender ad infinitum. Ah, mas ali existia um farol, um majestoso farol que se erguia sobre uma estrutura conhecida por mim e meu irmão, pois era nossa casa, nossa querida casa.
Corremos para aquele lugar, não nos importava a estranheza no ambiente, tudo aquilo nos soava natural, como num sonho. Sentíamos que aquela era nossa casa, era nossos quartos e nossos bens, alguns que havíamos perdidos, como nossos pais, que ali estavam como se nada tivesse acontecido.Senti o abraço deles e a janta de ovo com purê de batatas com katchupp estava na cozinha, podíamos jogar videogame a noite inteira. Por ontem, por nossa passagem.
Entramos, felizes, naquele lugar do cotidiano onde o tempo se suicida, onde tudo para e as memórias apenas se repetem. Quanto tempo estávamos lá é impossível supor, no estupor temporal que rege o sonho apenas concordávamos com esta realidade.
Mas eu era tão curioso... E por fim tomei-me por consciente e me desprendi do conveniente, parei para observar aquele farol, que se colocava em cima de minha casa. Chamei meu irmão e subimos o telhado de casa, abrimos a porta e subimos a escada.
Era um salão de festa, com uma decoração infesta de lixo de coisas sem sentido, carrinhos, espelhos, retratos de pessoas desconhecidas, ursos de pelúcia, carros, material de desenho, jóias e tantas outras coisas. Como se aquele emaranhado de coisas tivesse sido comprimido para formar as paredes e pilares do farol, nossos pés doíam. Mas por ventura era belo, pessoas moravam ali, sentíamos suas histórias. Eu senti em mim ecoar esta frase, como uma apresentação, um convite:
todos aqueles que perderam suas vidas e quiseram voltar para poder sentir em si o gosto de ganhar algo ao menos uma vês…” mas eles usavam máscaras, maquiagem, e viviam numa triste peça daquilo que pensavam ser, ou daquilo que se cobravam a ser… Eram todos como personagens, no desespero de ao menos uma vez, naquele lugar, serem tudo aquilo que não puderam ser. Era como um baile de fantasia, com a vergonha a caminhar dentre eles,  na sensação de um antiquário. Lá os tempos e as épocas se misturavam e crianças sacrificadas se mesclavam á aqueles que perderam suas vidas em minas de carvão. Lá as pessoas e seus sofrimentos se condensavam em um forte abraço, com as unhas na pele e da carne passando, arrancando cada pedaço de nós num desejo desesperado de viver, numa fome nunca a ser realmente saciada, como naufrago morto de sede a beber água do mar!
Esse doce desespero!
Sim, o mais doce desespero num templo de autopiedade! De tantas crianças que não viveram, “tias solteironas”, velhos infelizes, pessoas que viveram presas, todos aqueles que não puderam ter uma vida, um destino deles! Aquela casa era um farol, um sanatório, uma grande festa... Até que encontrei a mim e a meu irmão, naquele lugar, vimos a nós mesmos em nossa própria mentira. E ao me aproximar, sentia em minha pele o frio de minha morte, estava morto e aquele não era meu lugar, era uma farsa e eu mentia para mim. Aquilo não é real, não! Aquilo não faz sentido, é só lixo! Algo que deve ser deixado para trás. Vi tanto medo e desgraça, vi tanta ilusão que tudo começou a derreter, tantos corpos, corpos que mortos tentavam se sustentar numa dança histérica, tortuosa.
Tomei consciência, sim.  Estava em lugar algum, apenas um luz e a sensação de estar envolto de um líquido, não respirava. Só havia uma única luz, e a sensação de que algo maior, mais forte e em todo o espaço onde eu estava me impulsionava para aquela luz. Que não era bem uma luz. Era uma vontade, um sentido. Era só seguir o fluxo. Havia apenas um mundo lá fora e o alívio de ter resistido mais uma vez à aquele velho lugar.