sábado, 3 de janeiro de 2015

Redenção



Redenção

Ele podia ver as estrelas da janela de seu quarto, a trás de uma janela de vidro grossa e ovalar. Segurava uma xícara de café quente enquanto em seu computador tocava um blues indefinido de mais de idade incomensurável.
Era uma pessoa alta, sob um casaco verde com botões que imitavam madeira e um cabelo grisalho comprido parecia um emaranhado de teias sob uma folha. Sua testa era enrugada, mas naquele momento estava mais do que nunca. Ele esperava.
A nave era um ambiente asséptico, de um branco clean e móveis ajeitados como se houvesse a necessidade de economizar espaço naquele lugar. Uma piada devido as extensões imensuráveis daquela nave, construída a parte da extinção de planetas inteiros, se estendia como uma nau na largura do que seria dois planetas Marte.
Seu nome era Nautilus e era a nave suprema da espécie que a criou, uma nave com seu próprio ecossistema, mais de 7 bilhões de escravos na maquinaria cresciam e morriam nas fornalhas sem ver outra luz que não a do carbono queimando e da proteína utilizada para alimentar o motor. Escravos que não se viam mais como da mesma espécie, albinos e frágeis de olhos negros e narinas finas para filtrar a fumaça de onde viviam. Mentalmente programados para o trabalho, sem a liberdade de pensar, sentir...
No coração da nave, havia a prisão do ser mais formidável desenvolvido neste universo, seu nome era apenas Motor, mas ela era um moto perpétuo, como uma enorme massa senciente que agonizava por toda a eternidade gerando energia para o Nautilus, alimentando-se de si mesma num eterno movimento, de sua medula colossal saia a energia para movimentar aquela colossal criatura de ferro que atormentava o universo conhecido.
Limpa e cuidada pelos escravos que podiam sair da maquinaria, nenhum humano livre suportaria ver o horror que sustentava suas vidas. A única excessão era aquele homem de casaco verde, decididamente a figura mais importante numa massa de 16 bilhões de cabeças, muitas delas lobotomizadas consensualmente ou não.
Era ele o responsável pelo Timão que regia a Nautilus e era ele que decidia o destino dela. Poucos eram os que se importavam com o rumo da nave, de seus destinos, enquanto eram embrenhados no torpor de suas vidas estéreis, imersos no cotidiano.
Entre as ruas, quase desertas, aquela humanidade estava trancada em seus aposentos imersos nos vícios de suas soberbas concepções da realidade.Por hora ouvia-se um gemido onde pouco poderia-se conjecturar se pertencente ao sofrimento ou ao gozo. Servidos pelas maquinas ou pelos escravos como motivos de tradição ou requinte, a sensação era de que aquela nave lenta e monstruosa portava uma espécie caduca e já invalida, gasta pelo tempo mais nada poderia sonhar ou criar.
Capitão tinha um asco por tudo aquilo, quando o seu antecessor deu fim a própria vida, ele foi selecionado ao azar para ser treinado para esta função.
Tinha 200 anos conscientes dês que ele fora animado pela incubadora e a própria nave o havia guiado dês de então para esta função. Era apenas uma criança de 7 anos quando fora exposto ao motor, ali ele conheceria a razão de ser o motivo daquela nave existir.
Fora o único a ter acesso ao histórico dela e a sua forma, assim como as rotas aos possíveis planetas habitáveis calculados á milênios por sua espécie.
Fora programado em seu cérebro todos os históricos de Capitões Ascendentes, memórias incontáveis que fêz com que seus olhos, narinas e ouvidos sangrassem.
Fora por duzentos anos conscientes um ser vivo, mas injetado em sua medula as memórias de milhões de anos de vidas.
Uma criança dominada por uma máquina que apenas fazia sua função, até o momento em que deveria ser exposto ao motor, observar o horror que simbolizava a genialidade de sua espécie e se conectar por um momento para compreender o funcionamento daquela horrenda maravilha.
Ouviu os pensamentos dela, por um minuto e assim pode ser incrustado com as marcas de seu posto em sua tez e tornará-se ciente de seu ostracismo.
Ganhara um casaco verde, que ali estava numa mesa a sua espera por 20 anos, dês do suicídio do seu ascendente.
Observara a cúpula que o mostrava o universo, era uma sala ampla sob uma cúpula de um vidro extremamente resistente e transparente, onde no centro da sala havia um timão de dois metros de altura.
O mapa estava em sua cabeça, agora bastava para ele seguir o rumo. Era ele e o motor os dois responsáveis pelo rumo de sua espécie e a afinidade frente a todas aquelas almas entorpecidas.
O plano que ele escutou do lamento do motor era simples,tênue e suave como o canto de uma baleia, como o blues que tocava por centena de milhares de vezes em sua sala. Sob o desespero do vazio do universo e da indiferença de sua espécie torpe e estúpida, sob o horror gerado nas maquinarias da nave, sob o insolência sobre as ordens do cosmo e um castigo sobre tudo que mantém aquele sofrimento.
A realidade era cruel, esta era a memória mais física que adivinha de seu último ascendente, imerso no sofrimento perene de uma dor de tempos infindáveis, de uma solidão incomensurável de um carcere criado em laboratório, um motor apenas.
E embrenhado na dor de tantas almas Capitão esperava, havia guiado aquela nave por toda a sua existência, com aquele casaco e as tatuagens que seus semelhantes desconheciam, seu número de série que correspondia por cada vida injetada em seu cérebro denso.
Os peso pela consciência da geração dos escravos, pela imprudência de sua espécie caduca, pela estagnação e egoísmo de um uma espécie que se deixou reinar pelo escape e desespero. Se enfiando em suas necessidades fisiológicas, entorpecidos para não suportar uma existência que fora o desejo de seus ancestrais.
A fuga pela alienação e entorpecimento, o descaso pelo sofrimento e o egoísmo absoluto.
Guiados por um capitão que continha em sua mente toda a história conhecida de sua espécie, todos os seus pecados, todas as suas culpas envoltas num desespero latente, criando novas formas de sofrimento para aqueles que consideravam inferiores mas não passavam de filhos renegados. E o motor… A consciência da dor suprema e o suplício eterno pela indiferença do Homem, ululando em sua mente um canto como o choro de todos os anjos.
Anjos esquecidos como tudo o que fora antes esta humanidade.
E era ele, com as mãos segurando firmes o timão, que tinha o poder sobre todo o tudo que lhe fazia parte.
E ele esperava, apenas um leve toque na direção e a história do universo mudaria.
Sim ele esperou, esperou por toda a sua existência o sentimento de redenção que esperava sentir, a leveza intensa de um incomensurável ato de perdão.
Um martírio como forma de redenção a todo aquele universo e principalmente, á aquele único que compartilhou a sua dor. A aquele que cantava no  silêncio por um tempo incomensurável, sobre a dor de uma existência gerada por uma espécie indiferente ao sofrimento alheio.
"Meu amigo, esta é para ti. Esta é para todos nós. Está é para mim" Disse, inclinando o leme, para que a colossal Nautilus se movesse em direção a estrela RMC 136a1. Agora era só esperar.