domingo, 1 de dezembro de 2013

Noite

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Quando eu era moleque, quem sabe o que poderia ter acontecido comigo. Devo admitir, eu odiava a escola, me era um inferno e eu via naquela rotina um desperdício de vida. Quando se é pequeno o mundo parece mais imensurável do que nos é quando adulto e aquilo brilhava diante mim numa mistura de  ilusão e desejo.
Sim, e minha avó morava em um apartamento em São Paulo, com a sala dando para uma varanda de azulejos brancos, onde se podia ver luzir a cidade como um céu estrelado. Estrelas que se moviam num trafego interminável e subiam pelos prédios, piscando de acordo com a rotina de cada um.
E eu tendo de fazer lição de casa, ficar preenchendo aqueles cadernos de caligrafia que o destino me comprovou a inutilidade. Mas tudo bem, eu tinha um plano de fuga, bastou pedir para a minha vó uma quantidade interminável de balões da feira, além é claro de caldo de cana. Em uma mesa de pvc amarela, eu amarrei estes balões com o barbante que tinha encontrado na cozinha e saqueei a geladeira com todo um acervo de besteiras da turma da Mônica.
Levava um caderno, lápis e minha mascara e capa do Batman. Levava um casaco e dois sapatos de lã porque eram confortáveis. Ainda posso sentir a textura daquela  lã, é engraçado.  Por fim eu estava certo de que haveria tudo para eu poder partir.
Imagina-me em uma daquelas vidas errantes que eu ouvia meu avô falar, na possibilidade de perder-me naquele mundo das revistas da National Geographic, pois eu era um moleque e tinha um futuro cinzelado  que brilhava como as janelas do meu prédio. Era um azul fosfóreo e marinho.  E entre o gelo do sul e as cordas do barco, colecionaria amores em minhas cicatrizes e morreria ébrio no frio de uma navalha.  Quem sabe teria dois amores feito os pescadores  naquelas músicas que meu pai escuta e voltaria para casa cheio de cracas e histórias a contar com  as cabeças encolhidas de companheiros de viajem, como meu avô contava, índios que colecionavam cabeça de inimigos e  seria obrigado a comer meus companheiros de viajem como prisioneiro num ritual sinistro. Dardos e flechas venenosas sob o veneno de sapos multicoloridos, enquanto tentaria sobreviver em um lugar denso envolto de cobras gigantes e animais desconhecidos. Sempre ouvi sobre animais pré históricos que eram descobertos em poças e cavernas destes lugares, ou congelados como os mamutes, onde com seus marfins pessoas faziam trenós.
Pois bem,  andaria  pelos polos e conheceria reinos de gelo, caçaria focas em cima de trenós e teria uma matilha de cães. Possivelmente veria polvos gigantes e cachalotes e veria a aurora boreal, com a cara cheia de fuligem, pescaria caranguejos no ártico ou saquearia outros navios e faria fortuna.  Tornar-me-ia um pirata, saqueando os ingleses e resgatando princesas como meu avô falara que fizeram meus ancestrais, trabalhando para o rei da Espanha ganharia título de nobreza e teria um castelo.
Possivelmente perderia uma perna ou um olho. E seria legal ter um olho de vidro, andando se apoiando sob um bacamarte e com aquelas roupas de capitão. Mas, neste momento escutei as batidas na porta. Escutei o barulho de meu pai e minha avó conversando e depois o tom de voz de meu pai. Eles me veriam naquela bagunça, com uma sacola cheia de comida, deitado fantasiado de Batman, no centro de uma mesa, na varanda com um monte de balões esperando o vento me levar embora. Resolvi então, sentar na frente da televisão e fingir que nada tinha acontecido. Se eu fecha-se a cortina meus pais não veriam, pensei. E fora assim, me levaram pra casa e pouco me lembro do percurso. Tirando uma decepção, me disseram que tinha um elefante em casa, mas era apenas um de pelúcia, ainda tenho ele, está no meu armário.
Esta noite teve uma das maiores tempestades, pelo menos, era isso que eu pensei. Sentia o vento uivar dentre as frestas da janela e o barulho denso da chuva.  Ignorava o que estava acontecendo com a minha “jangada” na varanda. Mas sentia que o mundo todo despencava lá fora e eu ali dentro, em meio a minhas cobertas. Pensando em tudo o que poderia ser, na vastidão das possibilidades que o mundo me traria. Naquela noite eu dormi bem.
No outro dia estava de castigo.