quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Sacy - Parte 1 ou talvez 2






Parte 1 ou 2


“Você é sujo, você pertence à sujeira.” Foram as primeiras palavras sussurradas em seu ouvido. Sentia o cheiro, aliás, aquilo lhe cobria. Aquilo lhe sufocava e lhe envolvia. Fora assim, depositado lá para depois o trafego dar tempo de tampar lhe.  “Você é sujo, você pertence à sujeira.” Aquilo sussurrava em seu ouvido...
Ele havia sentido o colo de sua mãe, seu cheiro, por um mísero momento todo o mundo avia se moldado naquele enleio. Ele ouviu a sua voz, por um segundo, uma única palavra e aquilo ecoou como se fosse um corante se espalhando num copo d’agua. Ele sentiu toda uma forma de mundo antes de ser depositado no alumínio da lata de lixo, e com o tempo, ser coberto, soterrado. Sufocado no resto de pessoas que apenas passam por lá. “Você é sujo, você pertence à sujeira.” Ele sussurrava, o puxando pelo braço, lhe arrastando léguas e léguas por algum lugar...
Ele pensou que aquele era seu lugar, fazendo parte entre tantos, como mais uma chama vermelha na escuridão ao qual complementava. Seu trabalho era a dor e o medo, era o ódio contido pela inveja, era rir daquele ao qual torturava.
Eram tantos aqueles ao qual brincar, fervendo assim como suas palmas, seus olhos e a sua língua áspera. Sufocava com fuligem aqueles a quem  deveria e ao mérito era apenas a repetição de um eterno trabalho.  Ele dançava em meio ao fogo e ao cheiro de ferro incandescente, era o chumbo entrando em suas narinas, abrindo seu olhos vermelhos como os grandes poços de onde se sentia o cheiro de todo aquele horror coagulado. Mas sim aquilo era seu lar, era parte de sua natureza e vontade.
Sentia-se inebriado, sentia-se envolto de uma razão em si, onde sua ocupação lhe fazia correr a eternidade ocupado. Seu trabalho o envolvia, seu trabalho lhe satisfazia, seu trabalho lhe libertava de alguma coisa. E aquilo lhe suprimia, lhe fortificava, modificava a si e ao seu corpo.
Sentia-se bem, como um em tantos, pendurado no alto daquele lugar, tornando fosco o fosco e olhando de cima aqueles que chegavam. Era um ódio intenso, como uma paixão doentia, era um fogo que suprimira uma inveja, uma inveja anciã que agora estava esquecida, sobrando apenas aquele  fogo alimentado por ela. Era um autômato e isto lhe fazia sentir-se bem, como um viciado.
Aquilo era tudo. Aquilo fora por quanto tempo? Um ano? Um século? Uma eternidade? Apenas alguns minutos? Nunca soube. Apenas soube que escutara um choro incomum, não era como tantos aqueles das torrentes de almas destroçadas e mutiladas com o qual costumava brincar. Era pequeno, era contido como um melodia, era doce e lhe dava medo. De onde vinha? Era-lhe familiar.
Aquilo soava  e aquilo lhe fez parar, no meio de tudo aquilo, parou e tentou se aproximar, era uma lembrança? Não, não tinha elas, mas aquilo lhe doía, lhe angustiava. Pela primeira vez sentiu algo, algo forte a ponto de alumiar aquele ódio e torna-lo sombra. Onde estava aquilo, se esforçou. Concentrou-se, aquilo vinha de fora, se esforçou, sentiu algo mais, era um cheiro... AQUELE CHEIRO, algo antigo como o ar para um afogado. Ele precisava chegar perto daquilo,  ele sentia o cheiro.
Ele seguiu o rastro do cheiro, se enfiou no meio do caos, sentiu a forma e o tormento de tudo que não existe. Sentiu arrancar-lhe pedaços de si, enquanto se exprimia entre tanta dor, mas aquele cheiro sempre estava mais forte! Aquilo lhe era bom, aquilo lhe fazia bem.  Aquilo lhe fazia ver uma luz, aquela luz fraca e turva, aquela luz, alguma coisa tinha além da treva.  Ele podia, mesmo com tanta dor lhe empurrando, aquelas almas afogando, se mutilando, num desespero. Mordidas, unhas entrando em sua alma, mas ele era forte.
Submergiu, respirou.
Estava num quarto, sentia o perfume, escutou o choro. Aquela era quem? Aquela estava caída no chão, um outro ser lhe espancava,  gritava coisas.  Aquilo tinha o cheiro inflamado de álcool, o mesmo álcool que diluía tantos em seu trabalho. Onde estava? Se viu diante daquele ser que batia nela. Olhou para ele, tinha de fazer algo, sentiu. Cada soco ou chute nela lhe doía em dobro. Sofria por ela.
Estava confuso, gritou. Gritou a única palavra que conhecia, de sua boca em brasas, de seus olhos vermelhos e de seu corpo carbonizado. Gritou “Tchau! Tchau! Tchau! Tchau!”. Lembrou-se dela, da voz daquele choro lhe sussurrar isso, antes de nunca mais a ver, por toda uma eternidade. “Tchau! Tchau! Tchau” Bastou isso para que aquele homem bêbado olha-se direto para ele, horrorizado, sair correndo. Olhou para sua mãe, estava ela coberta de um vermelho comum a ele, um vermelho quente ainda. Mas era tarde demais.
E lá estava ele,  olhando para ela, chorava. Ele chegou tarde e a tinha perdido. Tanta dor, sentindo-se culpado.  Olhou em volta e se viu em outro mundo. Um mundo familiar. Escutou um choro, investigou um pouco e viu um moleque a chorar, lhe era tão familiar. Aquilo deveria ser o irmão dele, pensou.