quinta-feira, 1 de maio de 2014

Aquele Lugar (TEMA: Último dia no paraíso)



Aquele Lugar

Eu morri, me lembro de estar morto, assim como meu irmão. Nunca mais voltaríamos para casa. Ambos tínhamos padecido de uma pneumonia derivada de sair a noite, para ver pela primeira vez a neve em nossa viagem para o interior de Santa Catarina. Eu era mais novo, por volta dos 7 e meu irmão creio que 10 ou 9 anos. Me lembro do desespero de meus pais, e o sentimento de culpa de ter estragado a férias deles por uma simples curiosidade. Mas eu era tão curioso...
Mas agora eu estava ali, em outro lugar, um lugar estranho. Meu irmão estava comigo, não sabia porque de estar lá, mas sabia que estava morto, a pneumonia tinha levado a mim e a meu irmão. Mas aquilo me atormentava, sob um céu opaco lamparinas antigas iluminavam estruturas de madeira que se sustentavam acima de uma água escura e turva. Era um hall de palafitas, mas aquelas toras deviam se estender ad infinitum. Ah, mas ali existia um farol, um majestoso farol que se erguia sobre uma estrutura conhecida por mim e meu irmão, pois era nossa casa, nossa querida casa.
Corremos para aquele lugar, não nos importava a estranheza no ambiente, tudo aquilo nos soava natural, como num sonho. Sentíamos que aquela era nossa casa, era nossos quartos e nossos bens, alguns que havíamos perdidos, como nossos pais, que ali estavam como se nada tivesse acontecido.Senti o abraço deles e a janta de ovo com purê de batatas com katchupp estava na cozinha, podíamos jogar videogame a noite inteira. Por ontem, por nossa passagem.
Entramos, felizes, naquele lugar do cotidiano onde o tempo se suicida, onde tudo para e as memórias apenas se repetem. Quanto tempo estávamos lá é impossível supor, no estupor temporal que rege o sonho apenas concordávamos com esta realidade.
Mas eu era tão curioso... E por fim tomei-me por consciente e me desprendi do conveniente, parei para observar aquele farol, que se colocava em cima de minha casa. Chamei meu irmão e subimos o telhado de casa, abrimos a porta e subimos a escada.
Era um salão de festa, com uma decoração infesta de lixo de coisas sem sentido, carrinhos, espelhos, retratos de pessoas desconhecidas, ursos de pelúcia, carros, material de desenho, jóias e tantas outras coisas. Como se aquele emaranhado de coisas tivesse sido comprimido para formar as paredes e pilares do farol, nossos pés doíam. Mas por ventura era belo, pessoas moravam ali, sentíamos suas histórias. Eu senti em mim ecoar esta frase, como uma apresentação, um convite:
todos aqueles que perderam suas vidas e quiseram voltar para poder sentir em si o gosto de ganhar algo ao menos uma vês…” mas eles usavam máscaras, maquiagem, e viviam numa triste peça daquilo que pensavam ser, ou daquilo que se cobravam a ser… Eram todos como personagens, no desespero de ao menos uma vez, naquele lugar, serem tudo aquilo que não puderam ser. Era como um baile de fantasia, com a vergonha a caminhar dentre eles,  na sensação de um antiquário. Lá os tempos e as épocas se misturavam e crianças sacrificadas se mesclavam á aqueles que perderam suas vidas em minas de carvão. Lá as pessoas e seus sofrimentos se condensavam em um forte abraço, com as unhas na pele e da carne passando, arrancando cada pedaço de nós num desejo desesperado de viver, numa fome nunca a ser realmente saciada, como naufrago morto de sede a beber água do mar!
Esse doce desespero!
Sim, o mais doce desespero num templo de autopiedade! De tantas crianças que não viveram, “tias solteironas”, velhos infelizes, pessoas que viveram presas, todos aqueles que não puderam ter uma vida, um destino deles! Aquela casa era um farol, um sanatório, uma grande festa... Até que encontrei a mim e a meu irmão, naquele lugar, vimos a nós mesmos em nossa própria mentira. E ao me aproximar, sentia em minha pele o frio de minha morte, estava morto e aquele não era meu lugar, era uma farsa e eu mentia para mim. Aquilo não é real, não! Aquilo não faz sentido, é só lixo! Algo que deve ser deixado para trás. Vi tanto medo e desgraça, vi tanta ilusão que tudo começou a derreter, tantos corpos, corpos que mortos tentavam se sustentar numa dança histérica, tortuosa.
Tomei consciência, sim.  Estava em lugar algum, apenas um luz e a sensação de estar envolto de um líquido, não respirava. Só havia uma única luz, e a sensação de que algo maior, mais forte e em todo o espaço onde eu estava me impulsionava para aquela luz. Que não era bem uma luz. Era uma vontade, um sentido. Era só seguir o fluxo. Havia apenas um mundo lá fora e o alívio de ter resistido mais uma vez à aquele velho lugar.