segunda-feira, 28 de abril de 2014

Saudades de casa. (TEMA: Último dia no paraíso)


Saudades de casa.

Havia dois garotos. Um se manifestava na figura de um velho, outro se manifestava na figura de um bufão e ambos eram irmãos. Estavam no cume da montanha mais alta do mundo, que era a porta para o paraíso e suas cavernas davam aos portões do inferno. Assistiam a desconstrução destes dois polos, na beira do precipício. Era, para o evento, um bom lugar para ser platéia.
“Aqui está tu! Estava te procurando! Anda, temos de ir embora!” Disse o velho, que era o caçula. “ E ae maninho, tudo bem? Veja isso.” Respondeu o mais velho, que era o bufão.
O bufão apontou para um ponto escuro como o nada, onde os anjos orbitavam e caiam como mariposas exaustas,  sem mais nenhum brilho. “O que é isso? É realmente o que estou pensando?”, disse o mais novo segurando seu cajado. “É, Ele está se desfazendo de tudo.” O som daquele evento era como um coro de todos os seres juntos, como um mar raivoso, como o principio de uma tempestade. Era colosso, grave e impessoal.
O mais novo sentou-se devagar ao lado do mais velho, se apoiando cuidadosamente, com a lanterna e o cajado em seu colo. O mais velho balançava as pernas na ponta do precipício, com suas meias coloridas e seu chapéu com pontas que de vez em quando faziam os guizos cantarem com algum movimento da cabeça.
Porém, fez-se um silêncio, até ser rompido pelas palavras do caçula. “Então é isso? E depois, vamos voltar como estamos para a terra dos vivos?” Estalou as costas, se espreguiçando. “Algumas almas estavam felizes sabia? Outras jamais desejariam voltar aos seus antigos lugares, outras ainda nem podem mais se encaixar para onde vão voltar.” Estava bravo, o mais velho costumava aprontar, sempre cabendo a ele a tarefa de voltar à traz e reordenar as coisas. “Lá o tempo corre de forma incessante, muitos encontrarão seus entes queridos tendo outras vidas, outros também não possuem mais nada lá que lhes interesse.” Encarou o tolo. “Foste egoísta, pensaste no que fizeste?” Terminou, por fim, olhando para baixo, iluminando com a lanterna o precipício.
O mais velho apenas deu de ombros. Abaixando a cabeça, numa posição de mea culpa, enquanto brincava com um guizo em seu chapéu, por fim, como se tivesse caído a ficha, confirmou com um sim tímido o sermão do irmão mais novo. Mas ele tinha seus motivos.
Estavam lá havia muitos anos. O paraíso fora a recompensa pela vida breve e sofrida que os dois tiveram, antes de serem o que são, a fome e o frio os haviam levado. Eram as duas únicas pessoas de uma pequena casa que ainda podiam trabalhar, ambos agora em caixões de tamanho médio, para corpos castigados e calejados. Do mundo dos vivos pouco se conheceu e para estes desafortunados havia sempre um tratamento especial, compensatório, pois a vontade dos homens vivos os havia feito essa pena. Eram estes, aqueles que tinham mais abertura para transitar na montanha. Apesar de que somente podiam observar de cima, eram estes os espectadores da tragédia humana. Mas era uma compensação um tanto quanto dúbia, pois isso, para o caso dos que foram cedo para o paraíso, também fazia-se refletir a necessidade de conhecer aquelas luzes que brilhavam à noite, todo aquele pequeno palco onde se fazia o duelo do bem e do mal. Mas lhes corroíam a doença da saudade, a saudade de casa e os tormentos do futuro do pretérito.
“Mas, foi  mesmo tu não foi?” Disse o eremita. “Sim fui” Disse o tolo. Sem demonstrar espanto “Mas o que você falou para Ele, como você conseguiu provocar tudo isso?”. O tolo dando de ombros, apenas afirmou “Precisava de alguém para desabafar.” “Mas isto não é um tanto prepotente?” E em resposta o tolo riu. “Não creio, Ele sempre foi gente boa comigo, porque seria prepotência?” Intrigado, o caçula e/ou eremita, se exalta “Mas o que falaste para ele?”. A resposta veio acompanhada de um olhar distante, “Apenas que eu estava enjoado, não me sentia mais a vontade aqui e eu sentia saudades de casa. Queria voltar ao meu lugar, rever a nossa mãe. Que nunca me senti pertencer à algum lugar, mas que queria poder estar lá também. Pois estava cansado.”
O caçula o abraça, meio que sem jeito. Mas resolve quebrar o silêncio, “E o que Ele respondeu?”. O mais velho solta um suspiro exagerado, para transparecer melancolia, “Que Ele me entendia muito bem, que já havia pensando nisso e que também sentia saudades de sua casa e estava cansado.”

“E de um dia para o outro, tudo está se desfazendo”, completou o eremita, depois riu, “A mamãe vai ter um ataque.” Ambos riram, o tolo solta uma gargalhada, “Ô se vai! Imagina a gente batendo a porta!? Oi mãe! A gente voltou, que tem pra janta!?”. Risos foram se reduzindo para o silêncio, até que o caçula diz, “Será que ela ainda faz aquela torta de morango?”. “Só indo lá pra saber, vamos?” O eremita assentiu. Ambos deram as mãos e pularam do precipício.

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