quarta-feira, 21 de maio de 2014

Livro dos Sonhos Esquecidos. Autor desconhecido. Página solta.



O desejo verte sobre a humanidade a necessidade de mudança, é uma força vital para o nosso desenvolvimento. Aquilo que nos faz movimentarmos, não confundi-lo com a luxúria pois esta é apenas um pequeno elemento, como que o fluido embriagante filho da destilação. Mente aquele que diz não desejar, pois, até mesmo buscar se distanciar dele está, de certo modo, ligado ao desejo.
E o sonho, como já dito antes por outras vozes, está naturalmente imbricado ao desejo. Em uma folha solta, com apenas a numeração da página, encontrei este breve relato.

“Soube através de outros viajantes sobre uma cidade que era a manifestação do Desejo, me falaram dela através do “ouvi dizer”. Era esta cidade como uma jóia rara, dizem, como se feita por um ourives. Outros dizem que ela brilhava à noite assim como a via láctea, pela intensidade de vida presente nela, já alguns se referiam a ela como um lugar paradisíaco onde se manifestava todos os sonhos eróticos. Cada forma, por cada um dos viajantes, era uma forma nova. Esta cidade mítica no mundo dos sonhos era um assunto sussurrado nas tavernas arquetípicas com seus variados viajantes. Um velho muçulmano me disse que ela era uma grande biblioteca, do mais alvo marfim, com uma mesquita planejada nos sonhos dos mais fabulosos arquitetos. Certa vez conheci, também, um pajé Guarani que me disse que lá estaria seus ancestrais e que a caça iria até seus arcos, sem nenhum homem branco, apenas a boa aventurança. Um velho senil me falou que lá havia todas as casas demolidas, cada lembrança da infância invocada para aquele que lá estivesse, com suas mães esperando na porta e o cheiro inconfundível de cada receita que se perderam com elas. Cada qual tinha um nome para esta cidade.
Resolvi seguir as histórias e partir para esta cidade misteriosa. Dei-me num deserto de sal, com poucos suprimentos, mas depois de poucos dias ali estava a sua imagem, ainda meio ocultada pelo horizonte, era uma cidade enorme, prédios variados e caóticos brilhavam no contraste de um céu negro, suas janelas eram de um azul intenso. Acreditava piamente que para mim tudo indicava que ali estariam todas as histórias esquecidas, cada artigo já não mais esgotado junto com cada peça fora de cartaz, era um local onde todos os tempos se colidiam. Era ao longe, uma vista gloriosa, um oásis em meio à uma extensiva salina.
Minha curiosidade supria as más condições do local, o sal estava quase a arrancar os meus pés, mas segui dias e dias naquela jornada, fascinado com aquela figura presente no horizonte. Economizava no máximo tudo e aquela imensidão de sal não me intimidava. Havia tantas promessas, que tipo de relíquias eu iria encontrar lá? Talvez amores de juventude, talvez meu amor ainda lá, como no dia em que a conheci, me esperando...
Mas tive de voltar, a realidade ao meu redor era cruel quanto ao seu recado, me faltaria água num deserto de sal. Prometi a mim mesmo voltar e dei a ela as costas. Como um apaixonado não correspondido, cedi várias vezes a olhar para trás, para me entorpecer e sofrer com aquela visão não correspondida, a promessa de um futuro que não aconteceu.
Mas depois a razão voltou à minha mente, desfiando aquele encanto. Entendi o que mantinha viva aquela cidade, pois, voltando à memória, percebi que Ela não aumentava nem diminuía conforme eu andasse, estava sempre lá, semioculta pelo horizonte. Não importava o quanto eu andasse naquele deserto, chegar a ela não era o importante. Por isso que ela se mantinha viva, por isso existia.
Lembrei-me das Cidades descritas por Ítalo Calvino. Lembrei-me da semelhança com as coisas sussurradas naquelas taverna.   Quem sabe posso insinuar que esta certa pessoa estivesse, por assim dizer, no lugar de Marco Polo...”

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