Saudades de casa.
Havia
dois garotos. Um se manifestava na figura de um velho, outro se
manifestava na figura de um bufão e ambos eram irmãos. Estavam no
cume da montanha mais alta do mundo, que era a porta para o paraíso
e suas cavernas davam aos portões do inferno. Assistiam a
desconstrução destes dois polos, na beira do precipício. Era, para
o evento, um bom lugar para ser platéia.
“Aqui
está tu! Estava te procurando! Anda, temos de ir embora!” Disse
o velho, que era o caçula. “ E ae maninho, tudo bem? Veja isso.”
Respondeu o mais velho, que era o bufão.
O
bufão apontou para um ponto escuro como o nada, onde os anjos
orbitavam e caiam como mariposas exaustas, sem mais nenhum brilho. “O que é isso? É realmente o que
estou pensando?”, disse o mais novo segurando seu cajado. “É,
Ele está se desfazendo de tudo.” O som daquele evento era como um
coro de todos os seres juntos, como um mar raivoso, como o principio
de uma tempestade. Era colosso, grave e impessoal.
O
mais novo sentou-se devagar ao lado do mais velho, se apoiando
cuidadosamente, com a lanterna e o cajado em seu colo. O mais velho
balançava as pernas na ponta do precipício, com suas meias
coloridas e seu chapéu com pontas que de vez em quando faziam os
guizos cantarem com algum movimento da cabeça.
Porém,
fez-se um silêncio, até ser rompido pelas palavras do caçula.
“Então é isso? E depois, vamos voltar como estamos para a terra
dos vivos?” Estalou as costas, se espreguiçando. “Algumas almas
estavam felizes sabia? Outras jamais desejariam voltar aos seus
antigos lugares, outras ainda nem podem mais se encaixar para onde
vão voltar.” Estava bravo, o mais velho costumava aprontar, sempre
cabendo a ele a tarefa de voltar à traz e reordenar as coisas. “Lá
o tempo corre de forma incessante, muitos encontrarão seus entes
queridos tendo outras vidas, outros também não possuem mais nada lá
que lhes interesse.” Encarou o tolo. “Foste egoísta, pensaste no
que fizeste?” Terminou, por fim, olhando para baixo, iluminando
com a lanterna o precipício.
O
mais velho apenas deu de ombros. Abaixando a cabeça, numa posição
de mea culpa, enquanto brincava com um guizo em seu chapéu, por fim,
como se tivesse caído a ficha, confirmou com um sim tímido o sermão
do irmão mais novo. Mas ele tinha seus motivos.
Estavam
lá havia muitos anos. O paraíso fora a recompensa pela vida breve
e sofrida que os dois tiveram, antes de serem o que são, a fome e o
frio os haviam levado. Eram as duas únicas pessoas de uma pequena
casa que ainda podiam trabalhar, ambos agora em caixões de tamanho
médio, para corpos castigados e calejados. Do mundo dos vivos pouco
se conheceu e para estes desafortunados havia sempre um tratamento
especial, compensatório, pois a vontade dos homens vivos os havia
feito essa pena. Eram estes, aqueles que tinham mais abertura para
transitar na montanha. Apesar de que somente podiam observar de cima,
eram estes os espectadores da tragédia humana. Mas era uma
compensação um tanto quanto dúbia, pois isso, para o caso dos que
foram cedo para o paraíso, também fazia-se refletir a necessidade
de conhecer aquelas luzes que brilhavam à noite, todo aquele pequeno
palco onde se fazia o duelo do bem e do mal. Mas lhes corroíam a
doença da saudade, a saudade de casa e os tormentos do futuro do
pretérito.
“Mas, foi mesmo tu não foi?” Disse o eremita. “Sim fui” Disse o tolo. Sem
demonstrar espanto “Mas o que você falou para Ele, como você
conseguiu provocar tudo isso?”. O tolo dando de ombros, apenas
afirmou “Precisava de alguém para desabafar.” “Mas isto não é
um tanto prepotente?” E em resposta o tolo riu. “Não creio, Ele
sempre foi gente boa comigo, porque seria prepotência?” Intrigado,
o caçula e/ou eremita, se exalta “Mas o que falaste para ele?”.
A resposta veio acompanhada de um olhar distante, “Apenas que eu
estava enjoado, não me sentia mais a vontade aqui e eu sentia
saudades de casa. Queria voltar ao meu lugar, rever a nossa mãe. Que
nunca me senti pertencer à algum lugar, mas que queria poder estar
lá também. Pois estava cansado.”
O
caçula o abraça, meio que sem jeito. Mas resolve quebrar o
silêncio, “E o que Ele respondeu?”. O mais velho solta um
suspiro exagerado, para transparecer melancolia, “Que Ele me
entendia muito bem, que já havia pensando nisso e que também sentia
saudades de sua casa e estava cansado.”
“E
de um dia para o outro, tudo está se desfazendo”, completou o
eremita, depois riu, “A mamãe vai ter um ataque.” Ambos riram, o
tolo solta uma gargalhada, “Ô se vai! Imagina a gente batendo a
porta!? Oi mãe! A gente voltou, que tem pra janta!?”. Risos foram se reduzindo para o silêncio, até que o caçula diz, “Será que ela ainda
faz aquela torta de morango?”. “Só indo lá pra saber, vamos?”
O eremita assentiu. Ambos deram as mãos e pularam do precipício.
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