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Quando eu era moleque, quem sabe o que poderia ter acontecido comigo.
Devo admitir, eu odiava a escola, me era um inferno e eu via naquela
rotina um desperdício de vida. Quando se é pequeno o mundo parece mais
imensurável do que nos é quando adulto e aquilo brilhava diante mim numa
mistura de ilusão e desejo.
Sim, e minha avó morava em um
apartamento em São Paulo, com a sala dando para uma varanda de azulejos
brancos, onde se podia ver luzir a cidade como um céu estrelado.
Estrelas que se moviam num trafego interminável e subiam pelos prédios,
piscando de acordo com a rotina de cada um.
E eu tendo de fazer
lição de casa, ficar preenchendo aqueles cadernos de caligrafia que o
destino me comprovou a inutilidade. Mas tudo bem, eu tinha um plano de
fuga, bastou pedir para a minha vó uma quantidade interminável de balões
da feira, além é claro de caldo de cana. Em uma mesa de pvc amarela, eu
amarrei estes balões com o barbante que tinha encontrado na cozinha e
saqueei a geladeira com todo um acervo de besteiras da turma da Mônica.
Levava
um caderno, lápis e minha mascara e capa do Batman. Levava um casaco e
dois sapatos de lã porque eram confortáveis. Ainda posso sentir a
textura daquela lã, é engraçado. Por fim eu estava certo de que
haveria tudo para eu poder partir.
Imagina-me em uma daquelas
vidas errantes que eu ouvia meu avô falar, na possibilidade de perder-me
naquele mundo das revistas da National Geographic, pois eu era um
moleque e tinha um futuro cinzelado que brilhava como as janelas do meu
prédio. Era um azul fosfóreo e marinho. E entre o gelo do sul e as
cordas do barco, colecionaria amores em minhas cicatrizes e morreria
ébrio no frio de uma navalha. Quem sabe teria dois amores feito os
pescadores naquelas músicas que meu pai escuta e voltaria para casa
cheio de cracas e histórias a contar com as cabeças encolhidas de
companheiros de viajem, como meu avô contava, índios que colecionavam
cabeça de inimigos e seria obrigado a comer meus companheiros de viajem
como prisioneiro num ritual sinistro. Dardos e flechas venenosas sob o
veneno de sapos multicoloridos, enquanto tentaria sobreviver em um lugar
denso envolto de cobras gigantes e animais desconhecidos. Sempre ouvi
sobre animais pré históricos que eram descobertos em poças e cavernas
destes lugares, ou congelados como os mamutes, onde com seus marfins
pessoas faziam trenós.
Pois bem, andaria pelos polos e
conheceria reinos de gelo, caçaria focas em cima de trenós e teria uma
matilha de cães. Possivelmente veria polvos gigantes e cachalotes e
veria a aurora boreal, com a cara cheia de fuligem, pescaria caranguejos
no ártico ou saquearia outros navios e faria fortuna. Tornar-me-ia um
pirata, saqueando os ingleses e resgatando princesas como meu avô falara
que fizeram meus ancestrais, trabalhando para o rei da Espanha ganharia
título de nobreza e teria um castelo.
Possivelmente perderia uma
perna ou um olho. E seria legal ter um olho de vidro, andando se
apoiando sob um bacamarte e com aquelas roupas de capitão. Mas, neste
momento escutei as batidas na porta. Escutei o barulho de meu pai e
minha avó conversando e depois o tom de voz de meu pai. Eles me veriam
naquela bagunça, com uma sacola cheia de comida, deitado fantasiado de
Batman, no centro de uma mesa, na varanda com um monte de balões
esperando o vento me levar embora. Resolvi então, sentar na frente da
televisão e fingir que nada tinha acontecido. Se eu fecha-se a cortina
meus pais não veriam, pensei. E fora assim, me levaram pra casa e pouco
me lembro do percurso. Tirando uma decepção, me disseram que tinha um
elefante em casa, mas era apenas um de pelúcia, ainda tenho ele, está no
meu armário.
Esta noite teve uma das maiores tempestades, pelo
menos, era isso que eu pensei. Sentia o vento uivar dentre as frestas da
janela e o barulho denso da chuva. Ignorava o que estava acontecendo
com a minha “jangada” na varanda. Mas sentia que o mundo todo despencava
lá fora e eu ali dentro, em meio a minhas cobertas. Pensando em tudo o
que poderia ser, na vastidão das possibilidades que o mundo me traria.
Naquela noite eu dormi bem.
No outro dia estava de castigo.